Olhando para trás…

Testemunho de Cidália Miranda

Quando o Zé nasceu pesava 2480gr e media 45,5cm, fiquei preocupada, porém o seu índice de Apgar (9 – 10) tranquilizou-me um pouco na altura. Foi preciso comprar roupa mais pequena que rapidamente deixou de servir pois recuperou muito bem o peso, por vezes 500gr por semana. Começou a sentar-se aos 6 meses e a dizer as primeiras palavras dentro da idade esperada. Começou por dizer “tai” e depois “pai” e só mais tarde “mãe”. Perto dos 3 anos as frases eram muito poucas e curtas, 2 a 3 palavras. Tinha um tique que era abanar um objeto qualquer por longos períodos de tempo. Por outro lado, conhecia todas as letras do alfabeto e contava até 100. As suas pinturas com aguarelas eram sobretudo números ou letras, que sobrepunha com diferentes cores e tamanhos, algumas faziam-me lembrar obras do artista plástico Jasper Johns. Sem saber ler, tinha também decorado todos os versos do livro: “O Ratinho Marinheiro”. Bastava abrir uma página à sorte que ele dizia o verso que lá estava. Para mim era muito confuso, como é que decorava tantas coisas e não desenvolvia a linguagem.

Um dia disse-me: “- Mãe, queres água?” Depois de algum tempo a insistir no mesmo, até chorar, é que eu percebi que era ele que queria água. Tinha iniciado a ecolalia, levei-o imediatamente a uma psicóloga para fazer um despiste e iniciou terapia da fala. Paralelamente o pediatra do Zé suspeita de Síndrome de Asperger e dá-se o início a um ano de muitas visitas a muitos médicos nas suas diversas especialidades e psicólogos. Instala-se um medo terrível.

Tinha feito uma lista de médicos, procurava a melhor equipa, mas acho que no fundo procurava alguém que me dissesse que o Zé não tinha problema nenhum. O Dr. Miguel Palha era o último da lista e quando chegou o dia da consulta eu já não queria ir, estava exausta. Todos eram unanimes no diagnóstico, porquê ir a mais um? Com alguma insistência do meu marido lá fui, confesso, muito contrariada. E foi a melhor consulta daquele ano. O Dr. Miguel tinha um discurso muito diferente dos outros, não era só médico, havia algo nele de muito paternal, esclareceu dúvidas e apresentou estratégias. Tocou-me profundamente e foi o médico escolhido. Também tinha uma Técnica de Educação Especial (Sandrina Ramos) que trabalhava, alguns dias, na nossa área de residência (Torres Vedras), o que foi outra vantagem pois já tinha passado por Lisboa, Carcavelos e Coimbra.

Logo na primeira sessão, o Zé estabelece uma interação com a técnica que eu julgava não ser possível e que tem durado estes anos todos. O comportamento dele com as outras psicólogas tinha sido para esquecer. Saía da mesa, subia prateleiras. Fazia tudo o que não devia.

Nesta altura o Zé tinha 3 anos e 9 meses. Fazia muitas birras quando não tinha o que queria. Por outro lado tinha momentos de grande ternura, dava muitos beijinhos e abracinhos. Aliás, era ele que me acalmava, que me tirava a dor que sentia no peito. Cheguei a tomar medicação para essa mesma dor que depois abandonei.

A licença que tinha pedido para assistência ao meu filho, permitiu-me tratar de tudo em casa, fazer pesquisas sobre o problema e preparar atividades / brincadeiras para que, quando fosse buscá-lo à creche, tivesse o tempo todo só para ele.  Como atividades extracurriculares tinha natação e equitação

Eu tentava diversificar as atividades pois, nesta altura, o Zé só queria que eu escrevesse os números até 100. E eu cansada, dava uma entoação ao 100 de forma que ele pensasse que era o fim dos números. Eu não queria ensinar mais números. Um dia, muito zangado, vira-se para mim e disse:

– Não! Cem um; cem dois; cem três; cem quatro… – pelo que respondi:

– Calma. Cento e um; cento e dois… e cento e noventa e nove! (com a entoação de que os números terminavam ali, não quis ensinar o 200). Dali a uns dias o irmão, sem saber que eu andava a evitar ensiná-lo, disse-me com grande entusiasmo:

– Mãe, já ensinei ao mano o 200; 300… e agora já conta até mil!

Passados 4 meses de acompanhamento com a Drª Sandrina começou a ler, tinha então 4 anos e dois meses. Tenho esse dia bastante marcado também pelo facto de estar à beira de uma depressão. Andava a dar demasiada importância aos relatórios, à ecolalia que não passava, à obsessão pelos números que me sentia a afundar. Quando chegamos a casa ele continuou a ler todas as palavras que apanhava e eu ganhei novas forças. Mais uma vez foi o Zé que me salvou.

Aprendi a relativizar mais as coisas e a procurar dar mais importância às conquistas feitas, por mais pequenas que sejam. E aprendi a fazer isso de tal modo que a ecolalia, que demorou alguns anos, desapareceu sem que me apercebesse.

Neste momento o Zé tem 11 anos, passou para o 7º ano. A disciplina em que tem mais dificuldade é Português e prende-se sobretudo com a interpretação e produção de textos (a luta continua). As atividades extracurriculares, desta vez escolhidas por ele, são futebol e música. Toca tuba há oito meses e dá mostras de grandes dotes. Tem um grande sentido de humor e faz toda a gente feliz à sua volta, é um querido.

Olhando para trás, até à data em que o Zé nasceu, recordo muitos altos e baixos na sua evolução mas sobretudo recordo uma história de amor, que espero que seja por muito tempo.

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